Apostila Completa de Montagem. Joana Collier (para consulta)

Montagem Cinema
32 min readMay 21, 2016

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História da Montagem

“O cinema é constituído por três fatores: o espaço, o tempo e o movimento real . Estes três elementos existem na natureza, mas entre as artes, apenas o cinema os reencontrou.” Artavazd Pelechian, cineasta armênio “Meu trabalho teórico de forma alguma me ajuda com minha prática artística concreta. Eu determinei um método em que faço algo primeiro, e só então procuro por uma explicação. Não se trata, portanto, de um caso em que sigo uma fórmula pré-estabelecida de montagem que resulta em um filme. Ao contrário: primeiro, faço o filme (…) O que as pessoas chamam de “minha teoria” nada mais é do que minha busca pelo significado daquilo que faço, por uma explicação da estrutura que forma um todo.” Artavazd Pelechian, cineasta armênio

PENSAMENTO e ESTÉTICA

O efeito estético principal do surgimento da montagem foi uma libertação da câmera, até então presa no plano fixo.

“A transformação do cinematógrafo em cinema operou-se em torno 3 dos problemas de sucessão de várias imagens, muito mais do que em torno de uma modalidade suplementar da própria imagem. Antes de pensar o movimento, criou-se o corte.” Christian Metz

PLANO é um trecho de imagem e/ou som de filme rodado ininterruptamente. É, portanto, um conjunto ordenado de fotogramas ou imagens fixas, limitado espacialmente por um enquadramento (que pode ser fixo ou móvel) e temporalmente por uma duração.

TOMADA (TAKE) é o ato de filmar, mais de uma vez, um mesmo plano. Garantindo diferentes opções nas atuações dos atores e ajudando o montador a ter margem de escolha na hora de montar.

CENA é o conjunto de planos filmados num mesmo local ou num mesmo cenário, e que se desenrolam dentro de um tempo determinado.

SEQUÊNCIA é um conjunto de planos ou cenas que formam uma única e coerente unidade de ação dramática.

A diferença entre cena e sequência é que a cena é determinada pela unidade de tempo e de lugar, ao passo que a sequência é caracterizada pela unidade de ação dramática.

MONTAGEM CINEMATOGRÁFICA

“Se a filmagem é o olhar, a montagem é o bater do coração.” “O ritmo vem de uma obrigação e do cumprimento dessa obrigação dentro de um certo prazo. O ritmo vem do estilo, do estilo que a gente tem em face da obrigação. Há pessoas que fogem da prisão com muito estilo.” Jean-Luc Godard

“O filme está por inteiro em relações (…). Relações dos atores com os atores, dos atores com os objetos e o cenário que os cerca, da ação com o ritmo dos planos e do encontro da imagem com o som.” Robert Bresson

MONTAGEM INTERNA e MONTAGEM EXTERNA

Têm como objetivo a direção deliberada e compulsória dos rastreamentos e pensamentos do espectador.

A atenção flutuante, série infindável de pensamentos que passam por nossa cabeça como um fluxo de idéias soltas, é um recurso importante, junto com o distanciamento crítico, na liberdade de olhar e pensar por parte do espectador.

MONTAGEM INTERNA

Plural dentro de 1 unidade fílmica

Marca a inscrição de movimento no tempo

COMPOSIÇÃO E RASTREAMENTO

ENQUADRAMENTO (Close, Plano Médio, Plano Americano, Conjunto, Plano Geral, Super Plano Geral)

PERSPECTIVA ou PROFUNDIDADE (Primeiro Plano, Segundo Plano…)

ESPAÇO (Composição Aberta — nem todos os elementos necessários para a ação dramática estão aparecendo em quadro; ou Fechada — todos os elementos da ação dramática estão incluídos dentro do enquadramento.)

COR e ILUMINAÇÃO (Intensidade de luz e sombras)

GRAFISMO (Disposição de objetos e volumes criando formas geométricas)

DEFORMAÇÃO ÓTICA (foco, filtros naturais)

TEMPORALIDADE (aceleração da imagem)

SUBJETIVA X OBJETIVA (A presença do observador revelada ou não na imagem)

ESTILO (Reconhecimento de características ligadas a Movimentos Artísticos)

PLANO SEQUÊNCIA

Plano com montagem interna que possui narrativa independente de outros planos para ganhar sentido. Permite ao público respirar junto com quem está do outro lado da câmera.

Possui censuras (cortes) de outra ordem: movimento de câmera movimentação no quadro

Possui 2 tipos de posturas :

Ação em função da câmera — a movimentação se organiza e se estabelece a partir do posicionamento da câmera. Câmera em função da ação — a movimentação é perseguida pela câmera numa dinâmica voyeur.

Dentre os maiores defensores do plano sequência está o teórico francês, André Bazin, autor do livro Montagem Proibida:

“Quando o essencial de um evento depende da presença simultânea de dois ou vários fatores da ação a montagem é proibida.”

“A montagem reduz a ambigüidade do real, forçando o filme a se tornar discurso. O evento em sua continuidade é o principal elemento para o efeito de realidade.”

MONTAGEM EXTERNA

Unidade a partir de um plural.

Justaposição de elementos fílmicos que produzam um efeito diferente/além do gerado a partir desses elementos, considerados isoladamente.

MONTAGEM CLÁSSICA

(E. S. Porter e D. W. Griffith)

Encadeamento dos elementos da ação em uma relação de casualidade e temporalidade diegéticas.

A diegese é a realidade própria da narrativa (“mundo ficcional”, “vida fictícia”). O tempo diegético e o espaço diegético são, assim, o tempo e o espaço que decorrem ou existem dentro da trama, com suas particularidades, limites e coerências determinadas pelo autor.

Representação do “real”

Construção do Espaço Fílmico através da decupagem (planos como parte de um todo)

Raccord ou Corte Invisível

Na narrativa clássica, o corte é regido por diversas regras, entre elas, o raccord que tem como objetivo manter a ilusão de continuidade orgânica entre dois planos montados sucessivamente. Os planos sucessivos de um filme não são sempre filmados em um único dia, podendo ser separados por intervalos de vários dias. Por isso, é fundamental assegurar que não haja mudança na concepção da cena durante esses intervalos de filmagem. Isto é, os objetos cenográficos deverão estar sempre no mesmo lugar, a iluminação deverá ter a mesma intensidade (vindo do mesmo lado, com a mesma cor e a mesma direção), as roupas e os cabelos dos atores deverão ser os mesmos, entre outros. Tudo isso ajudará a garantir a invisibilidade dos cortes. O continuista é o profissional responsável por assegu- rar essa consistência.

RACCORD DE MOVIMENTO

É gerado por um movimento que começa num plano e continua no seguinte, dando a impressão de uma ação contínua.

RACCORD DE DIREÇÃO

É a conexão de entrada e saída de campo. Por exemplo, se um ator sai num plano pelo lado direito, precisa entrar no próximo plano pelo lado esquerdo.

RACCORD DE CAMPO E CONTRACAMPO

Toda imagem possui seu contracampo. Por exemplo, num diálogo entre 2 pessoas, uma de frente para outra, o campo é o plano da pessoa falando e o contracampo é o da pessoa ouvindo. O contracampo é, então, aquilo que fica por detrás da câmera quando o campo está sendo filmado.

RACCORD DE EIXO

Plano que complementa uma determinada ação mantendo a mesma angulação no enquadramento. Por exemplo, um plano aberto de homem abrindo a porta, seguido de um close na fechadura no próprio eixo de câmera. Nesse caso, o corte serviu como aproximação no principal assunto do plano anterior.

RACCORD DE PANORÂMICA

A Panorâmica é um movimento lateral que move a câmera para o lado mantendo o mesmo eixo.

O Raccord de Panorâmica é o corte que mantém a direção do movimento para o mesmo lado nos dois planos montados.

RACCORD DE OLHAR

Quando um plano mostra um ator observando algo que é revelado no próximo plano, dando a impressão de subjetiva desse olhar.

RACCORD POR ANALOGIA DE FORMAS E CORES

Sensação de continuidade provocada por uma mesma iluminação, composição de cores e elementos no plano.

FALSO RACCORD

Dá uma ilusão de continuidade entre dois planos que possuem diferenças significativas na composição. O corte só consegue passar imperceptível pela força de atração do olhar promovida pelo movimento ou ação em quadro.

Walter Murch e a Regra de “Num piscar de olhos”

1 — O corte traz emoção?

2 — O corte avança a narrativa?

3 — O corte dirige o olhar?

4 — O corte é como faca na manteiga ou agressivo (desorientando o espectador)?

5 — O corte obedece a regra de eixo?

6 — O corte contextualiza o espaço da ação?

Diferentes cronologias narrativas

FLASHBACK

É a interrupção de uma sequência cronológica narrativa pela apresentação de eventos ocorridos anteriormente. É, portanto, uma forma de mudança no plano temporal. O flashback é um recurso típico de vários gêneros cinematográficos, onde o passado é

essencial para a compreensão da ação presente.

FLASHFORWARD

É a interrupção de uma sequência cronológica narrativa pela apresentação de eventos ocorridos posteriormente. É portanto uma forma de apresentar ao espectador um momento futuro ao que está ocorrendo no filme. Também é uma mudança no plano temporal.

ELIPSE

A Elipse, no cinema e em outras formas narrativas, refere-se a omissão intencional de informações ou imagens que facilmente seriam pressupostas pelo contexto.

Um exemplo de elipse, é a cena do filme “2001 Uma Odisséia no Espaço” (Stanley Kubrick) onde o suposto homem/macaco lança o objeto/osso para o alto, a câmera focaliza a imagem e na sequência sobre mesma angulação entra a imagem da nave no espaço. Neste exemplo cria-se uma elipse de milênios de evolução, sem que para isso seja necessário observar cada momento deste processo evolutivo, tudo isto acontece pelo modo em que as imagens são organizadas.

JUMP CUT

É um corte que quebra a continuidade de um plano pulando de uma parte da ação para outra que é obviamente separada da primeira por um intervalo de tempo. Por ser uma mudança temporal dentro de um mesmo plano, não existindo diferença no enquadramento e angulação, fica uma impressão de pulo no corte entre as imagens. (Corte legitimado em Acossado de Jean-Luc Godard, cineasta do Cinema Moderno)

MONTAGEM EXPRESSIVA/INTELECTUAL/DIALÉTICA

(Avant-Garde Francesa, Lev Kuletchov, Sergei Eisenstein e Dziga Vertov)

A montagem não é um meio, mas um fim. Visa exprimir por si mesma, pelo choque de duas imagens um sentido ou uma idéia. Exclui a consideração de um suposto “real”. O “real” só existe a partir de um discurso articulado.

Conflito gráfico Conflito das superfícies Conflito dos volumes Conflito espacial Conflito das iluminações Conflito dos ritmos Conflito de espacialidade (deformação ótica) Conflito de temporalidade (aceleração da imagem)

QUESTÃO SONORA

A tela do cinema é a fronteira a delimitar o espaço da imagem em um filme. O som, entretanto, não se vê limitado a uma fronteira demarcada, não só de forma física como também psicológica.

PAISAGEM SONORA

É uma grande massa homogênea gerada tanto pela natureza — vento, água, pássaros, insetos — quanto pelo homem — máquinas, trânsito, multidões. Ela compõe o que para a visão, chamaríamos de fundo. Existe para dar preenchimento e contorno a imagem. Sua presença pode não ser sentida mas sua ausência certamente seria estranhada. Vivemos imersos em sons que nos tocam e contribuem diariamente com nossos comportamentos e decisões, moldando as interpretações de tudo a nossa volta. O trabalho de sonorização cinematográfica é um espelho de todas essas sensações que nos atravessam a todo instante. O homem tem dado pouca atenção a sua audição e permitido que os avanços tecnológicos transformem o ambiente em que vivemos num verdadeiro caos sonoro.

Filmes barulhentos não são necessariamente filmes com uma boa edição de som. Isso acaba por prejudicar a nossa capacidade auditiva por diminuir o raio de alcance de nossa escuta. Apesar de toda a importância que os sons têm em nossas vidas, mesmo reagindo muito mais às impressões sonoras do que às visuais, vivemos em uma cultura da visão.

ESPAÇO IN

Constituído por todos os sons que possuem sua origem identificada através da imagem. Esse é o único espaço sonoro compreendido dentro dos limites estabelecidos pelo quadro imagético. Ouve-se tudo aquilo que se vê.

ESPAÇO OFF

É todo elemento sonoro que não é mostrado na imagem mas é por ela sugerido, admitido ou suposto.

EXTRA-CAMPO

O estudo do extra-campo pode ser analisado tanto na vertente sonora quanto na visual. Ele está relacionado a um espaço-tempo ausente do visual. Não se relaciona com a imagem, e pelo contrário, sua intenção é agregar algo inovador, uma informação, uma sensação ou algo que está muito além da imagem apresentada e que se associe a ela de forma inteligente e inusitada.

BANDAS SONORAS

São elementos de som que mixados a partir de uma concepção de desenho sonoro criam uma Paisagem Sonora, a trilha de um filme.

DUBLAGEM

Foi o primeiro recurso de sonorização em um filme com sincronismo técnico, pela dificuldade de gravação e edição de som direto até a invenção do Nagra (gravador de áudio portátil). Atualmente, este processo é utilizado apenas quando ruídos externos são maiores do que o elemento principal, a ser captado em cena.

SOM DIRETO

O som direto está relacionado ao plano de imagem. Numa sequência de planos com diferença de som direto que tem objetivo de criar um raccord sonoro, deverá ser adicionada uma banda ambiente como fundo. Isso ajudará na impressão de continuidade espacial e temporal. Por isso, é tão importante captarmos sons ambientes em todas as locações filmadas.

AMBIENTES (AMB)

O ambiente é uma sonoridade que se prolonga por vários planos, gerando uma espacialização sonora. Normalmente, ele se encontra vinculado a uma sequência com um mesmo espaço físico ou intelectual.

RUÍDOS (FX) Ruído de sala, Foley, Sonoplastia

Os ruídos em sua maioria, são sons curtos que pontuam o filme, ajudando a construir uma espacialidade e chamando atenção para elementos da cena. Eles podem reforçar a imagem, ou contradizê-la.

MÚSICA (MUS) Diegética ou não-diegética

Normalmente, a música é o último ítem a ser editado. Ao adicionar uma música em um filme deve-se prestar grande atenção na sua união com os demais sons, pois ela poderá escondê-los ou se chocar negativamente.

A música quando não-diegética, serve para ajudar a reforçar o clima da ação ou sentimento do personagem. Isso não quer dizer que uma música diegética não possa contribuir para o clima da cena. A música diegética é aquela que está presente na ação dramática em forma de rádio, televisão, show de música, personagens cantando…

FINALIDADES DA EDIÇÃO DE SOM

SIMULAR A REALIDADE

Contribuir para uma falsa sensação de continuidade. Possibilitar a crença de que algo não visto na imagem, tenha realmente ocorrido.

PREPARAR O ESPECTADOR PARA ALGO POR VIR

O som pode ser utilizado como anunciação de algo que ainda não vimos, mas que em breve se revelará. Revelar aproximação ou presença de personagens ou lugares, é um recurso simples e muito utilizado.

DIRECIONAR A EMOÇÃO DO ESPECTADOR

Inserir música ou elemento sonoro com o objetivo de emocionar, assustar, elevar a adrenalina criando tensão e expectativa ou relaxar. Induzir o espectador a sentir “as mesmas” sensações que os personagens através de representações subjetivas de seus sentimentos. Como se dentro de cada um de nós, tocassem determinadas melodias em momentos de felicidade, medo, tristeza, tensão etc.

REFORÇAR CARACTERÍSTICAS DE PERSONAGENS OU LUGARES

Sons e música podem, pela imagem de seus aparelhos reprodutores, ou pela característica subjetiva de um personagem, contribuir para construção e compreensão de uma narrativa. Seja situando época, distância, ou uma personalidade.

AMPLIAR O TAMANHO DA CENA

Permite aos espectadores imaginar até mesmo o que se encontra fora dos limites do quadro.

ESTILOS DE DESENHO SONORO

ESTILO NATURALISTA

Sonorizar tudo que é visto, sem chamar atenção para nenhum som específico. Utiliza-se o espaço fora da tela apenas como ambientação/preenchimento.

ESTILO REALISTA

Realça alguns sons em detrimento de outros ou elimina alguns sons de nossa percepção, com a intenção de conduzir a atenção do público para um ponto específico da narrativa. Ele reproduz, de certa forma, uma percepção mais próxima da qual vivemos no dia-a-dia.

ESTILO HIPER-REALISTA

Extrapola os limites da realidade por chamar atenção para um som que distorce a nossa percepção do real sem se afastar dele por completo. Esse som surge através de efeitos durante o processo de mixagem ou pela substituição por sons de outros objetos. Esse processo pode atingir efeitos narrativos diversos, sejam eles violentos ou delicados.

ESTILO EXPRESSIONISTA

Cria um espaço sonoro completamente desvinculado dos sons da realidade imagética apresentada, para assim, desenvolver uma nova realidade baseada no estado interior de espírito da narrativa.

PROCESSO TÉCNICO DA MONTAGEM

Princípio de Decupagem Sequência/Plano/Take /Material Bruto /Seleção

Copião = Agrupamento/Organização

Versões Master = Filme

Finalização Som e Imagem

PERGUNTAS A SEREM FEITAS DURANTE A VISUALIZAÇÃO DE UM MATERIAL BRUTO

1 — Qual é a sinopse do filme?

2 — Em quantas sequências ou linhas principais se estabelece a narrativa?

3 — Qual a finalidade da decupagem nessa narrativa?

4 — É possível identificar uma proposta específica de corte?

5 — Como o tempo será retratado?

6 — O espaço? É um espaço Contextualizado? É um espaço Qualquer? É um espaço Ator?

7 — Qual a previsão de estilo para a paisagem sonora?

8 — Existem signo símbolos ou metáforas?

9 — Demanda algum efeito especial? Com que objetivo?

A ESTÉTICA DO DOCUMENTÁRIO

Todos os grandes filmes de ficção tendem à documentário, como todos os grandes

documentários tendem à ficção. E quem opta a fundo por um, encontra necessariamente o outro no fim do caminho.” Jean-Luc Godard

“Um filme documentário, ao escolher seu objeto, é responsável pelo modo com que esse objeto poderá agir sobre a cultura, isto é, como este objeto poderá se transformar num meio de produção para outras obras. Toda obra é a transformação de outras obras, que se inscrevem anonimamente no seu corpo, e, ao mesmo tempo, dá a sua novidade como leitura para que outras obras se ramifiquem.” Arthur Omar

DEFINIÇÃO

O termo documentário é geralmente usado para designar um filme com caráter de documento. Mas nenhum documentário fornece, pelo menos por si só, informações absolutamente inquestionáveis, por mais evidentes que sejam as suas imagens, sobre determinado assunto.

Uma das coisas que individualizam o cinema face a qualquer outra forma de expressão é que ele é visceralmente documental, quanto ao tempo, ao espaço e aos lugares.

Os filmes de ficção são, de igual modo, vestígios de alguém, algo, algum tempo e lugar; contém a marca da época em que foram realizados e traduzem algo de historicamente verdadeiro dessa época.

O material base do documentário é o mundo que nos circunda, mas o que o distingue de outros filmes é a percepção desse material e não apenas o seu uso. O registro do mundo e a reflexão desse mundo, no documentário, têm um lugar privilegiado.

O que impede o documentário de ser uma ficção é a recepção. Não é importante a autenticiade do material, mas a autenticiade do resultado, ou seja, o efeito provocado pelo filme. Não importa qual seja a história. O fundamental é perceber que, bem mais do que conteúdos ou estratégias narrativas, o que faz um filme ser um documentário é a maneira como olhamos para ele; em princípio tudo pode ou não ser documentário, dependendo do ponto de vista do espectador.

No documentário, o mundo real não é registrado, mas representado. E a sua representação encontra-se aliada à persuasão, à retórica e ao argumento. O argumento é uma categoria geral e essencial na construção fílmica. Mesmo que essa construção assuma uma proposta não narrativa.

Utilizar elementos de não-ficção nos filmes de ficção é uma ação legitimada pela necessidade de tornar mais credível a mensagem que o autor do filme pretende passar. Utilizar elementos de ficção em documentários tem a particularidade de contribuir para a constante mutação, renovação e obrigatoriedade de repensar ou atualizar as bases em que o gênero se assenta. Há um enriquecimento para a prática fílmica no seu todo.

Há filmes tão ambíguos que poderiam ser lidos tanto como documentários quanto como ficção ou como os dois ao mesmo tempo.

Se o documentário coubesse dentro de fronteiras fáceis de estabelecer, certamente não seria tão rico e fascinante em suas múltiplas manifestações.

BASES HISTÓRICAS

IRMÃOS LUMIÈRE E SEUS VIAJANTES

Presente nas telas de quase todas as capitais do mundo a partir de 1896, os travelogues dos Lumière, cartões postais em movimento, filmados pelo mundo, contribuíram para tornar o filme de viagem um dos gêneros mais populares ao longo de toda a era pré-nickelodeon.

Mas em uma época marcada pela crescente afirmação dos códigos narrativos do cinema de ficção, o filme de viagem em particular, e as atualidades em geral, continuaram carentes de uma “escritura” fílmica própria, capaz de capturar o espectador e trazê-lo para dentro do mundo imaginário do relato.

Era difícil perceber o propósito de filmes cujo único interesse residia em serem um espelho ou reprodução do que, sem ajuda ou intervenção da câmera, o público poderia presenciar. E assim que o fenômeno técnico do cinematógrafo foi assimilado, o público deles se aborreceu, passando a destacar-se o gosto pelo desenvolvimento das histórias romanceadas.

ROBERT FLAHERTY E O EXÓTICO

O verdadeiro marco do fim do período Lumière será o lançamento de Nanook of the North, de Robert Flaherty, em 1922. A novidade radical deste filme estava na abertura de um novo campo de criação situado entre os filmes de viagem e as ficções, sem se identificar plenamente com nenhum dos dois modelos.

Seu filme inovava ao colocar os fatos que testemunhou em uma perspectiva dramática: construía um personagem — Nanook e sua família — e estabelecia um antagonista — o meio hostil dos desertos gelados do norte. Usando técnicas da narrativa clássica em um terreno onde antes só havia lugar para o mais puro registro. Ele organizou micro-narrativas, mas sem que uma concatenação causal as ligasse em vista de um desfecho.

Flaherty, como muitos etnógrafos, baseou-se em anos de “observação participante” para extrair do próprio ambiente os elementos fundamentais do drama. Não usou atores profissionais, convocando membros da comunidade para encenarem diante da câmera os seus gestos cotidanos. E resolveu encenar situações tradicionais que já não faziam parte da vida da comunidade, mas que serviam ao seu propósito central de representar o conflito entre homem e a natureza hostil. O essencial para ele não era a real identidade de alguém, mas sua função e o desempenho no filme que gerando credibilidade.

Segundo Flaherty: “ Frequentemente você tem que distorcer algo para captar seu espírito verdadeiro.”

DZIGA VERTOV E A UTOPIA COMUNISTA

A partir de 1919, ano em que Lênin decretou a nacionalização do cinema russo, Dziga Vertov fez tábula rasa de tudo o que o antecedeu, pronunciando a “sentença de morte” contra todos os filmes sem exceção”. Ele dizia: “Quando vocês e as ratazanas vão parar de se preocupar com os objetos de cena? Cuidem da organização da vida real.”

O que estava em discussão era a definição dos métodos mais adequados à participação do cinema na construção do “homem novo” e de uma sociedade industrial e socialista.

Ao defender a evacuação dos estúdios e a descida das câmeras às ruas para filmar “a vida de improviso”, Vertov não estava propondo um cinema realista, mas a criação de uma nova visão da realidade, que só o cinema poderia proporcionar. Optando por um “cinema intelectual” que não quer apenas mostrar, “mas organizar as imagens como um pensamento”.

Entendia que, durante a filmagem, a câmera não deveria interferir no curso normal dos acontecimentos. Como regra geral, a câmera deveria ser invisível para as pessoas filmadas, de modo a cumprir sua verdadeira vocação: “a exploração dos fatos vivos”. Ao referir-se à irrepetibilidade, Vertov defendia a tomada única, ao contrário do método convencional de filmagem.

Enquanto Flaherty baseou-se nas regras de continuidade da montagem narrativa, construindo com as imagens um espaço-tempo ilusioriamente unitário, Vertov seguiu o caminho oposto, baseando-se na descontinuidade. A continuidade que Vertov se preocupava era a do argumento.

Entre 1918 e 1922, a montagem já era um procedimento universal, mas no domínio das atualidades Vertov reinventava, e a teorizava como um pioneiro. No seu mais importante filme, O Homem e a Câmera, Vertov criou sobreposições, divisões de tela, mudou sentido e velocidade dos movimentos, trabalhando com uma livre escritura audiovisual. Dessa maneira, toda sua obra teórica e fílmica traz a marca do anti-naturalismo.

A relação complementar homem-máquina é uma idéia central no método vertoviano: “Nós iremos, pela poesia da máquina, do cidadão desajeitado ao homem elétrico perfeito”. A percepção do homem é limitada. As “deformações psicológicas” e uma mobilidade restrita o impedem de apreender a estrutura dos processos naturais e sociais. Mas a máquina possui aptidões que o ser humano não tem. Daí “a aspiração legítima de libertar a câmera, reduzida a uma triste escravidão, submetida à imperfeição e à miopia do olho humano”. Assim, Vertov chamava seu cinema de Cine Olho ou Cinema Verdade, através do qual o “olho da máquina”, a partir do registro e da montagem, iria ter acesso a uma verdade superior à percepção humana do real.

AVANT-GARDE E O CINEMA EXPERIMENTAL

Movimento de renovação cinematográfica que se desenvolveu na pós Primeira Guerra Mundial, entre 1921 e 1931. Os filmes, abstratos e de crítica a sociedade burguesa, procuravam expressar sentimentos e idéias para além da dimensão narrativa do cinema clássico, através de sugestões criadas por artifícios técnicos de enquadramento, montagem e ritmo. As temáticas se baseavam em fatos comuns, mas livres de qualquer lógica, dentro de um contexto poético.

Era um circuito altamente dinâmico de exibições independentes. Com conferências e debates para discutir e impulsionar novas tendências dessa arte em desenvolvimento.

Os filmes eram muito diferentes uns dos outros. A única coisa em comum era estarem fora do circuito comercial.

LINHAS PRINCIPAIS GRÁFICA — utilizava efeitos especiais, deformação ótica e alterações de velocidade. Tinha uma preocupação com ritmos plásticos.

SUBJETIVA — era uma tendência ligada ao existencialismo e representava as expressões e impressões do sujeito.

SINFÔNICA — Esses realizadores abandonavam os estúdios, e se dirigiam às ruas das grandes metrópoles, filmando personagens e paisagens urbanas. Seus efeitos dramáticos não surgiam de enredos, mas da curva rítmica de movimentos no decorrer do dia e do cotidiano dessas cidades, criando um fluxo orquestrado de imagens.

AS 4 PRINCIPAIS TENDÊNCIAS

Esses modos de representação servem apenas como molduras teóricas generalizantes para facilitar uma análise comparada de documentários.

EXPOSITIVO OBSERVACIONAL INTERATIVO REFLEXIVO

EXPOSITIVO

Corresponde ao documentário clássico, em que um argumento é veiculado por letreiros ou narração off, servindo-se das imagens como ilustração ou contraponto, com o intuito de criar uma perspectiva informativa e didática do assunto.

Documentário Inglês e o Drama na Soleira da Porta A partir de 1927, o escocês John Grierson se tornou idealizador e principal organizador do movimento do documentário, a própria palavra foi utilizada, pela primeira vez, por ele, quando se referiu às realizações fílmicas de Robert Flaherty.

Na sua concepção, para que o público fosse capaz de apreender a complexidade do mundo industrial moderno, era necessário recorrer a novas técnicas de comunicação e persuasão. E o cinema, com seus padrões dramáticos e sua capacidade de capturar a imaginação das platéias, possuía um grande potencial a ser explorado no campo da difusão de valores cívicos e na formação da cidadania.

O cinema americano tinha logrado um alto nível de comunicação com o público, mas as questões sociais costumavam ser diluídas em histórias que enfatizavam conflitos amorosos e dilemas individuais. No cinema soviético ocorria o oposto: as questões individuais, capazes de motivar a identificação do público, eram submetidas aos aspectos sociais e políticos.

A realização de um cinema comprometido com a educação pública dependia da síntese entre a representação das questões individuais e sociais. Isto é, traduzir a complexidade da vida moderna em padrões dramáticos acessíveis.

Seus filmes foram os primeiros a levar à tela as imagens dos trabalhadores ingleses, criando as bases para o desenvolvimento de um cinema realista na Inglaterra.

A solução encontrada por Grierson para a circulação dos seus filmes foi criar um sistema alternativo de distribuição e exibição, composto por salas especiais, escolas, sindicatos, associações e unidades móveis. Esse sistema paralelo de veiculação resultou na maior rede de cinema educativo da Inglaterra. Por outro lado, manteve os documentários à margem do mercado comercial e do contato com o grande público, criando uma contradição que nunca seria resolvida: um sistema fundamentado em uma retórica de comunicação de massa, mas que resultava em filmes vistos por uma platéia selecionada e minoritária.

Dentro dos princípios elististas do griersionismo, a visão do diretor era mais importante do que as opiniões dos personagens. E com a utilização da narração em off, grande parte da produção oficial se assemelhava a uma palestra ilustrada. Era como uma “voz de Deus” incorpórea, onisciente, onipresente e onipotente, que a partir dela era imposto todo o sentido da trama imagética.

Mas apesar de uma série de questões que expõe contradições no documentário inglês, ele representou uma trincheira de resistência ao cinema comercial teatralizado. Desenvolveu um série de pesquisas sobre o uso não-ilustrativo de músicas, ruídos e palavras. Alberto Cavalcanti, brasileiro, de formação cinematográfica na avant-garde, teve influência fundamental no desenvolvimento sonoro dos documentários ingleses, com sua preocupação poética e experimental.

Dizia ele: “Primeiro, reduzimos ao mínimo a música e a palavra. Depois, banimos o sincronismo absoluto e as leis de encenação teatral. E tomamos os sons naturais como matéria prima, os quais cortamos, regravamos, orquestramos, e tentamos estilizar o conjunto.”

OBSERVACIONAL

Tem sua expressão mais típica no cinema direto norte-americano do fim dos anos 50 e começo dos 60, criado por profissionais de jornalismo e direito, procurou situar o espectador na posição de observador ideal, defendeu radicalmente a não-intervenção, suprimiu o roteiro e minimizou a atuação do diretor durante a filmagem. Privilegiou o plano-sequência com imagem e som em sincronismo, adotando uma montagem que enfatizava a duração da observação.

Cinema Direto e a Mosca na Parede

A tendência observacional substitui a função de “tratamento criativo da realidade” por um objetivismo extremado. Era uma tentativa idealista de comunicar “a vida como ela é vivida”, numa “transparência frente ao real”.

Esta negação dos métodos interpretativos do documentário clássico se dá paralelamente a uma espécie de retomada da vertente cientificista do cinema das origens. O desejo de apreender a realidade tal como ela é, reduzindo a realidade à visibilidade.

Para estes cineastas, a comunicação com o espectador dependia estritamente de transmitir da forma mais fiel possível a sensação experimentada durante a filmagem. Realismo, naturalismo e cientificismo confluíam para um modelo em que a única forma válida de conhecimento era aquela que se baseava nos fatos e a experiência era o critério absoluto da verdade.

No cinema de observacional, o documentarista leva a sua câmera para junto de um acontecimento de tensão torcendo por um momento de crise.

O ideal supremo seria um cinema sem cinema, um puro olhar sem suporte. Perseguindo um sonho de anular a distância entre percepção e imagem.

INTERATIVO

Enfatiza a intervenção do cineasta. A interação entre a equipe e os “atores sociais” assume o primeiro plano, na forma de interpelação ou depoimento. A subjetividade do realizador e dos atores sociais é plenamente assumida.

Cinema Verdade e a Mosca na Sopa

Surge na França, entre cineastas de formação acadêmica no campo da sociologia e da etnologia. Defrontados cotidianamente com as implicações da “observação participante”, sabiam que “sempre que uma câmera é ligada, uma privacidade é violada”.

A transparência da realidade no cinema é uma falácia. Porque o processo de produção de imagens cinematográficas implica necessariamente em inscrever nestas imagens uma subjetividade. Com a escolha do que mostrar, a organização daquilo que é mostrado, a sua duração e a ordenação dos planos em si.

Se a neutralidade da câmera e do gravador era impossível, por que não utilizá-los como instrumentos de produção dos próprios eventos, como meio de provocar situações reveladoras?

Jean Rouch foi um representante destacado desta tendência. Seu filme Crônica de um Verão, 1960, realizado conjuntamente com Edgar Morin, pode ser considerado o protótipo dessa nova configuração do documentário.

Aqui é a palavra que predomina, através da conjugação de diferentes estratégias: monólogos, diálogos, entrevistas dos realizadores com os atores sociais, discussões coletivas envolvendo a crítica aos trechos já filmados e, até mesmo, a autocrítica dos próprios realizadores diante da câmera.

Segundo Edgar Morin: “O que me interessa não é o documentário que mostra as aparências, é uma intervenção ativa para ir além das aparências e extrair delas a verdade escondida ou adormecida.”, num “jogo com valor de verdade psicanalítica”.

“Cada um só pode se exprimir através de uma máscara e a máscara, como na tragédia grega, dissimula ao mesmo tempo em que revela, amplifica. Ao longo dos diálogos, cada um pode ser ao mesmo tempo mais verdadeiro que na vida cotidiana e, ao mesmo tempo, mais falso.”

“As pessoas, talvez porque haja uma câmera ali, criam algo diferente, e o fazem espontaneamente”. Ao criá-lo, não só criam o filme como criam uma dimensão de si mesmos que não poderia existir sem o filme, dimensão ao mesmo tempo real e imaginária.

REFLEXIVO

Profundamente meta-linguístico, procura explicitar as convenções que regem o processo de representação. Apresentam o processo de produção que evidencia o caráter de artefacto do documentário.

ANTIILUSIONISMO E O ESPELHO PARTIDO

No contexto politizado e radicalizado que se seguiu aos conflitos de maio de 1968, a França foi palco de um debate em que as convenções do ilusionismo cinematográfico foram questionadas. Os anti-ilusionistas exploram a mistura dos gêneros para nos tornar conscientes dos artifícios pelos quais a realidade é mediada através da arte. Conceitos como “tornar estranho” e “tornar difícil” integram a estratégia de motivar o espectador a procurar significados diferentes daqueles que são proporcionados pela percepção convencional do mundo.

Se o cinema-espetáculo oculta o trabalho de produção de significados, seria preciso responder com um cinema que trouxesse em si a marca do processo de produção, ao invés de tentar apagar os traços que o denunciam como objeto trabalhado e como discurso que tem por trás uma fonte produtora e seus interesses. O principal não é o mundo representado, mas o próprio processo de representação. Enquanto a arte ilusionista procura causar a impressão de uma coerência espaço-temporal, a arte anti-ilusionista procura ressaltar as brechas, os furos e as ligaduras do tecido narrativo.

Montagem disruptiva-associativa, muito utilizada por Vertov, em que uma imagem aparentemente incongruente é inserida em uma sequência, antecipando um tema, estabelecendo uma ligação com algum conteúdo anterior ou simplesmente estabelecendo uma relação metafórica com aquilo que está sendo mostrado. O espectador é então motivado a reagir a esta perturbação, desencadeando processos mentais associativos capazes de criar novas ligações lógicas.

No filme de Godard, “Le Gai Savoir”, uma personagem afirma: “Eu quero aprender, ensinar a mim mesma, a todos, como voltar contra o inimigo aquela arma com a qual ele nos ataca — a linguagem.”

Existem 3 formas de manifestação que não são excludentes, mas que apresentam dimensões da reflexividade:

LÚDICA — artista tira a própria máscara pelo prazer de brincar com os códigos do espetáculo.

AGRESSIVA — o artista assume uma postura de confronto com o público.

DIDÁTICA — proporciona ao espectador um nível mais elevado de consciência crítica frente à arte e a história.

Dziga Vertov não somente foi um pioneiro na pesquisa sistemática de uma “sintaxe” cinematográfica especificamente documentária, como também imprimiu a esta pesquisa um caráter antiilusionista e epistemológico, que demoraria mais de trinta anos para ser reconhecido.

Começa-se a defender que é o ser humano que constrói e impõe sentido ao mundo. Cria a ordem. Não a descobre. Organiza uma realidade que é significante para ele. E é em torno destas organizações da realidade que cineastas constróem todos os filmes.

CINEMA ENTRETENIMENTO VS. CINEMA ARTE LÍNGUA VS. LINGUAGEM

“A linha de frente artística só se faz presente quando ela flerta abertamente com tudo que não é arte, que está na linha de fronteira com o que se constitui como não-arte, como

não-ainda-arte, como aquilo que ainda pode causar estupor ao fazer com que o espectador a cada minuto fique se perguntando o que fazer com todas as informações que recebe da tela.” Ruy Garnier

A Língua tem pretensão de fórmula, regra, gramática. Ela se pensa como um processo evolutivo de gênero.

A Linguagem é uma busca mais autoral que reflete a experiência singular de cada diretor ou filme.

CINEMA CLÁSSICO E A GRAMÁTICA

Desde 1895, ano oficial que os críticos e historiadores dizem ter sido criado o cinematógrafo, que os filmes são realizados em diferentes culturas e com diferentes propósitos.

Diversas escolas e gêneros apareceram durante a história do cinema, mas foi o chamado Cinema Clássico Americano o responsável pela formação da indústria cinematográfica. Com a I Guerra Mundial (1914–1918) em curso, a produção cinematográfica européia foi abalada e já nesta época Hollywood começava a despontar com seus grandes estúdios e realizadores como D W. Griffith e E S. Porter, e no final da primeira década do século XX chegava à liderança do mercado mundial.

Hollywood e seu sistema de produção, criou a padronização da película (35 mm) e dos filmes (criação de gêneros: romance, suspense, ação, comédia, drama, faroeste, ficção científica…).

Fazendo com que o espectador cativo fosse arrebatado pelos aspectos psicológicos e afetivos da trama, não tendo a possibilidade de refletir ou assumir um distanciamento crítico em relação à visão de mundo que lhe era apresentada. Eram filmes que tinham o personagem principal fabricado como celebridade atraindo as massas consumidoras de um ideal americano de vida.

Dizem os críticos que Hollywood eliminou a distância entre o espectador e a construção fílmica, criando a ilusão, no espectador, de que ele estava no interior da ação reproduzida no espaço ficcional do filme.

O cinema tradicional pretende ser ideal e absoluto. Focaliza alguns personagens numa determinada época de suas existências mas fornece um juízo extra-temporal sobre suas atitudes. Desenvolvendo uma consciência extra-temporal, refletindo sobre o futuro, passado e presente dos personagens.

A câmera é onisciente; percorre todos os locais, esclarecendo dúvidas e fornecendo detalhes funcionais. Busca uma visão absoluta de uma determinada situação. Criando uma decupagem extensa, repleta de planos, para cada sequência. O objetivo é construir um espaço fílmico contextualizado a partir de planos como parte de um todo. Cada tipo de enquadramento expõe um sentido gramatical obrigatório. Comparece sempre nos momentos certos, “humanos” e dramáticos — terminando este interesse, corte.

Constrói uma intriga, desenvolve-a até um clímax e a finaliza dentro de rígidos princípios de narração e descrição. Utiliza uma montagem lógica que tem por objetivo relacionar fatos e ocorrências em função de uma intriga disciplinada e evidente.

Os diretores geniais do cinema tradicional foram aqueles que souberam construir seus filmes com uma admirável síntese entre forma e conteúdo. Cada um com sua experiência criativa e com sua contribuição artística conseguiu abastecer essa “gramática” clássica de renovação estética, mesmo que presos ao esquema hollywoodiano de fazer cinema.

O cinema clássico é um cinema que “vê do alto”, encarnando o Deus e o Destino.

CINEMA MODERNO E AS NOVAS ONDAS

A partir de 1955, alguns realizadores compreenderam a desatualização da sintaxe cinematográfica clássica e tentaram novas formas. E na sua cola, surgiram os movimentos “Novos” por todo o planeta. Nas imagens do cinema moderno, encontramos forças que põem em xeque as noções de verdade, totalidade, ordenamento. Ao contrário da imagem-movimento do cinema clássico, onde o espectador reconhece no filme as situações, os comportamentos, a representação de um estado de coisas, na imagem do cinema moderno, o mundo perde sua identidade, entra em crise e se torna falsificante, múltiplo. Mas, podemos nos perguntar, entra em crise, mas crise do quê?

Segundo D e l e u z e , esse abismo que surge no cinema, coincide com uma certa conjuntura que interveio na própria história do cinema e no mundo com a II Guerra Mundial. Crise da crença em um mundo coerente e ordenado, crise da crença de que uma ação pudesse efetivamente mudar o mundo.

Com o cinema moderno verifica-se uma passagem ao relativo, a câmera desce a altura do olho, buscando um ângulo possível dentro de uma situação dada. A câmera individualiza-se e toma posição frente à intriga. Ao invés, de estar em todos os lugares e até dois lugares ao mesmo tempo no caso da montagem paralela. Já não há a idealização da realidade, mas um desejo de integração ao real.

Documentários servem de grande influência na liberdade narrativa com ausência de progressão dramática com ritmo estabelecido.

O cinema como a arte das aparências, ao contrário do senso comum de que as aparências enganam, os cineastas modernos acreditam que não. A única possibilidade de conhecimento se dá com a captação da superfície dos seres e objetos num eterno presente que constitui o instante privilegiado.

A valorização do presente faz com que a cena não exista em função da estrutura e do desenlace, mas em função de si mesma. Cada cena reflete e revela o presente. Defende a intuição de duração como única maneira de perceber o tempo. O tempo vivido é

incompreenssível para a inteligência lógica. Pois ele é qualitativo, e não, quantitativo como as ciências procuram demonstrar. O tempo real consiste de uma consciência da duração interna, do espírito, da memória. Não é um tempo espacializado como num relógio.

“O estilo subjetivo de cada diretor surge na espera pelo devir dos instantes, favorecendo um aspecto em detrimento do outro. A espera como uma tomada de forma. É na indeterminação da espera que a fotografia resiste e produz um sujeito. Espera como uma reserva de futuro no interior do tempo. Busca do instante singular. A indeterminação da espera gera uma abertura para o futuro. A espera não é um artesanato, uma doação de forma. É o estabelecimento de uma tensão que favorece uma “tomada de forma”,que só é possível porque se espera.” Maurício Lissovsky

As construções fílmicas estão ligadas ao existencialismo com relação de dinamismo e violência perceptiva contra a previsibilidade do espectador.É toda uma realidade dispersiva que surge, onde a relação dos personagens com o que lhes acontece é de indiferença ou mesmo estranhamento. Essa disjunção nos libera desses modelos de reconhecimento com os quais classificamos o mundo na sua forma pragmática.

O surgimento dessa disjunção no fazer cinematográfico, encontra-se como embrião da concepção do cinema contemporâneo.

CINEMA CONTEMPORÂNEO E O HIBRIDISMO

“Momento do cinema em que tanto o vocabulário clássico quanto o moderno já estão evidentemente repertoriados, e assentados num regime de signos do já-conhecido, do já-visto (déjà vu), e cujo projeto artístico exige uma certa selvageria dos signos, uma opacidade (às vezes apenas aparente) dos significados e uma beleza bruta do significante que nenhuma linguagem já constituída a que estamos acostumados poderia dar conta.

É necessário travar uma guerra contra a narrativa. Nada a ver com fazer filmes a-narrativos (mesmo porque qualquer arte da duração está sempre, em algum nível, presa a uma certa idéia de continuidade lógica): existe sempre uma linha narrativa tênue que se estabelece e que estrutura o sentido de tudo que vemos. Essa guerra à narrativa existe sobretudo como maneira modal de fazer cinema, considerar o tecido narrativo como algo que dá as linhas básicas de fruição da obra. Mas estruturar seu cinema a partir de outra coisa que é ela mesma não-narrativa, extrair beleza não a partir da história que está sendo contada, mas da narrativa própria da imagem, do intrincado jogo de decifração e revelação que pode se estabelecer de diversas formas entre espectador e imagem.”

R u y G a r n i e r

No cinema contemporâneo ou pós-moderno, as imagens não mais se referem ou fazem a mediação de uma realidade socialmente dada. Ao contrário, as imagens são virtualmente a realidade ela mesma.

Um tempo em que já não há expectativa de uma obra monumental, duradoura, definitiva, típica dos movimentos anteriores. Mas um tempo de “rearranjos” exaustivos e incessantes, de fragmentos de textos preexistentes e blocos de construção cultural mais antigos sofrendo sempre uma “nova e exaltada bricolagem. As imagens que hoje permeiam constantemente as representações fílmicas atestam o fato de que vivemos uma época em que a “questão contemporânea” se reduz ao fluxo inexorável de imagens pré-digeridas que jorram aos montes na televisão e no próprio cinema.

No discurso visual da arte, o pós-moderno está relacionado com o alegórico, a apropriação, a desconstrução, e com a ruptura das fronteiras entre as artes e as camadas da cultura: superior-erudita, inferior-popular e de massa.

O cinema entretenimento, que depende da imagem enquanto espetáculo, reproduz um conjunto de valores técnicos e estéticos que incluem em si mesmos uma uma ideologia da exaltação da tecnologia e o que esta representa no contexto político, econômico, ideológico do seu tempo. Posicionando-se a favor de uma infinita “tecnologização” do aparato cinematográfico.

A cultura calcada na espetacularização visual da violência urbana, da catástrofe, do apocalipse, tornou-se a grande temática fílmica da atualidade e está em toda parte, exposta aos olhos fascinados, e cada vez menos atônitos, dos espectadores.

A ênfase agora é dada à construção através de efeitos especiais de uma imagem puramente ilusionista, enquanto a narrativa recebe um tratamento simples, direto, linear, e que não imponha nenhum obstáculo ou dificuldade, por menor que seja, ao entendimento do espectador.

Porém como destaca Jean-Louis Comolli, se a sociedade do espetáculo triunfa, uma parcela mais frágil e obscura desse espetáculo vai minando a outra e essa parcela cabe à arte, “é ela que pode representar a opacidade do mundo, sua radical alteridade, o que escapa à ficção que está à nossa volta e invade nosso dia a dia”.

É todo um pensamento cinematográfico que deseja ser um “apesar de tudo” diante da barbárie, uma dissidência para com as imagens do mundo, uma espécie de “entre”. E cabe ao cinema se rebelar contra as leituras belicistas e culturalistas que a mídia fabrica, quando ela naturaliza hostilidades, ao invés de historicizar os conflitos; quando ela não os coloca em perspectiva em função das arbitrariedades políticas das grandes potências, da violência de suas invasões, dos efeitos de seu descaso econômico.

A força do cinema é inventar operações poéticas complexas para dizer um real múltiplo, um real que não pode ser reduzido. Reduzir significaria enfraquecê-lo, despotencializá-lo. Como enfatiza Rogerio Luz,“a obra é aquilo que o sujeito experimenta da obra, porque ela o produz e na base desse processo encontram-se não a erudição ou a ciência estética, mas a experiência que o indivíduo compartilha potencialmente com os outros.”

Portanto, o desafio maior é pensar todo o tema das hibridações, das fronteiras, das itinerâncias, em suma, das culturas e sua capacidade de formular pertencimento. E o cinema contemporâneo pode nos fornecer uma imagem dissidente, intervalar. Tais rachaduras são enfatizadas através das descontinuidades no nosso presente, como as fissuras do Estado nação, do mundo globalizado, do humanismo universalista, das classes sociais, das identidades, das culturas. São filmes que querem fugir dos riscos das narrativas de caráter totalizante, global, planificador.

Esse cinema, cada um com seu estilo e sua marca, propõe uma imagem necessária do mundo, da realidade, do que está aí. Não se trata de fazer oposição a um estado de coisas midiático, ser negativo ou simplesmente antagônico. Esse cinema quer perguntar que novas relações estão se criando nessa fluidez crescente, nessa dissolução das fronteiras e na criação de outras, mais sutis, porém não menos brutais; esse cinema quer mostrar e falar desse mundo.

O cinema contemporâneo segue o fluxo desconectando aquilo que é narrado de acontecimentos externos relevantes, da história, e, em alguns casos, no interior da narrativa, os acontecimentos entre si. Por fim, o que resulta é a multiplicação dos focos narrativos e dos pontos de vista a partir dos quais os acontecimentos são relatados. A narrativa não é subvertida ou abandonada mas sim, efetivamente neutralizada, em prol de um ver ou olhar o presente cinematográfico, constituído como precondição histórica em resposta à fragmentação radical da vida moderna e à destruição de comunidades e coletividades mais antigas.

Seguindo essa lógica, não se deve esperar que o sujeito pós-moderno possua apenas uma, mas sim várias identidades. Por isso mesmo, não pode mais ser representado por um único ponto de vista. As representações culturais do sujeito pós-moderno — fragmentado, formado por “identidades temporárias”, que pode ser identificado e se identificar com várias posições diferentes e até mesmo contraditórias — devem obedecer ao processo de “descentramento” do sujeito.

A arte passa a ser por excelência a experiência de espaço em que esse sujeito se inscreve, a experiência de tempo em que ele vai à deriva. Talvez hoje seja a arte — mais do que a política ou a ciência — o domínio fundamental para entender os processos de subjetivação em curso na sociedade contemporânea.

“Se as vidas complexas de muitas pessoas prosseguem inconscientemente, então essas vidas são como se nunca tivessem sido.”

“O hábito devora trabalhos, roupas, móveis, a esposa e o medo da guerra… E a arte existe para que as pessoas sintam as coisas, para tornar a pedra pedregosa. O propósito da arte é transmitir a sensação das coisas como elas são percebidas e não como elas são conhecidas.”

Viktor Shklovsky, crítico literário fundador do conceito de estranhamento

Referências Bibliográficas

Apostila criada e organizada pela professora de montagem Joana Collier em novembro de 2011

Montagem Cinematográfica p. 04 montagem interna e montagem externa questão sonora processo técnico da montagem * pp. 13 a pp. 16 extraídas da apostila de som do professor Andreson Carvalho

Estética do Documentário p. 19 Definição

Bases Históricas 4 Principais Tendências * pp. 21 a 28 seleção de parágrafos do livro Espelho Partido, tradição e transformação do documentário do autor Silvio DaRin

Cinema Entretenimento vs. Cinema Arte p. 29 Cinema Clássico e a Gramática

Cinema Moderno e as Novas Ondas

Cinema Contemporâneo e o Hibridismo * pp. 31 a 33 seleção de parágrafos do texto Foucault e o cinema contemporâneo da autora Andréa França

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Montagem Cinema
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Written by Montagem Cinema

Regina Dias, Membro da Associação Brasileira de Cinematografia, ABC Emérita da Associação dos Montadores de Cinema, AMC Caricatura do perfil @chicocaruso

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